Riding in the Zone Rouge, de Tom Isitt

Meados de setembro de um ano corrido, venho compartilhar em texto uma das leituras mais interessantes que fiz nos últimos meses, uma obra de não ficção que une dois assuntos que me são preciosos: a Primeira Guerra Mundial e o ciclismo. Comecemos com um pouco de história.

Quando a primavera se aproxima no Hemisfério Norte, todos os fãs de ciclismo se preparam para mais uma temporada das competições de estrada. As provas clássicas, muitas delas com origem no século XIX, são disputadas em um dia e, dentre as clássicas, cinco são importantes a ponto de terem o título de Monumentos. Além delas existem as Grandes Voltas, provas realizadas em múltiplas etapas, com poucos dias de descanso para os competidores. A Vuelta a España é a mais nova das três, disputada desde 1935. A segunda mais antiga, por alguns considerada a mais bonita, é o Giro d’Italia, disputado desde 1909. A prova mais importante e mais famosa, com larga margem, é o Tour de France, disputado desde 1903.

 

Maurice Garin (em pé, sorrindo) no Tour de France de 1903

 

Corridas de bicicletas não eram novidade na Europa, mesmo no surgimento do Tour de France, uma vez que a primeira corrida oficialmente reconhecida aconteceu em Paris, no ano de 1868. A popularização e a evolução da bicicleta nas décadas seguintes aumentaram o interesse pelo turismo regional em um veículo individual que não exigia os cuidados demandados por um equino, as distâncias diminuíram, e a primeira volta ao mundo sobre bicicleta foi realizada entre 1884 e 1886 com uma Penny-farthing.

 

Thomas Stevens, no Japão, durante sua volta ao mundo

 

Durante o século XIX, a França sofreu convulsões políticas e sociais que moldaram o mundo contemporâneo. Da Era Napoleônica à Restauração Bourbon, da Revolução de 1848 à Guerra Franco-Prussiana, os franceses foram levados ao limite de sua resistência e comprometimento. Com a derrota frente aos alemães em 1871, o sentimento de humilhação e revanchismo se somou ao amor à França e à necessidade de preparar as futuras gerações para o restabelecimento do orgulho nacional ferido. O ciclismo, esporte novo e em plena ascensão, passou a ser visto como uma maneira de ter jovens fisicamente dispostos e preparados para quando a situação chegasse. No final do século XIX o Caso Dreyfus dividiu a opinião pública francesa, levando a nação às beiras de uma guerra civil – o capitão de artilharia, de origem judaica, era inocente ou culpado de traição por passar segredos militares aos alemães? – e enquanto as instâncias jurídicas agitavam a sociedade e a imprensa, um jornalista chamado Henri Desgrange imaginou uma grande corrida de estrada, como as muitas que já aconteciam há mais de 30 anos, só que em 6 etapas e percorrendo todo o país. O objetivo era político, sendo uma disputa entre jornais cujos proprietários tinham visões opostas sobre o Caso Dreyfus, mas carregava o estímulo ao turismo, a valorização do interior, o conhecimento de toda a França pelos franceses – já que o jornal faria a cobertura completa das etapas e das regiões percorridas – e, de quebra, um fortalecimento do patriotismo francês. Além, claro, de aumentar as vendas do recém-fundado periódico esportivo L’Auto frente ao seu maior e mais estabelecido rival, Le Vélo. Sucesso.

 

 

Poucos anos depois veio a Primeira Guerra Mundial, toda a destruição e a imobilidade do Front Oeste, os horrores da guerra de trincheiras, armas químicas, túneis, ofensivas e contraofensivas que matavam dezenas de milhares de jovens disputando poucos metros de terreno. Entre 1914 e 1918, toda a região em torno das fronteiras entre Alemanha, França, Bélgica e Luxemburgo foi disputada palmo a palmo. Em 11 de novembro de 1918 um armistício foi assinado suspendendo as operações militares, e foi renovado em dezembro de 1918, janeiro de 1919, fevereiro de 1919 até que o acordo de paz, costurado pelo Tratado de Versalhes, fosse assinado em 28 de junho de 1919. Durante esse período qualquer atividade que rompesse os termos do armistício poderia, efetivamente, reiniciar a guerra.

Para a população geral e para os donos de jornais esportivos que precisavam reiniciar seus negócios, a guerra tinha acabado em 11 de novembro de 1918. Diversos eventos foram pensados para trazer a alegria de volta para a vida cotidiana, e não tinha como o ciclismo, já considerado o esporte nacional da França, ficar de fora. Nesse contexto, em janeiro de 1919, um famoso periódico chamado Le Petit Journal resolveu lançar um projeto poliesportivo centrado na cidade de Estrasburgo, um dos grandes centros de disputa na Primeira Guerra Mundial, terreno perdido para a Alemanha em 1871 e reconquistado pela França na Grande Guerra. Ainda em janeiro foi divulgado o projeto de uma corrida ciclística com início e final em Estrasburgo, passando por Luxemburgo, Bruxelas, Amiens, Paris, Bar-le-Duc e Belfort, cruzando todos os grandes campos de batalha do Front Oeste, incluindo Flanders, Artois, Cambrai, Verdun e Somme. Era uma grande homenagem aos franceses que lutaram, um tributo aos que tombaram, e uma lembrança aos que resistiram nesta guerra e na guerra de 1870-71. A prova teria sete etapas de um dia, com um dia de descanso entre cada etapa, com o objetivo de cumprir 1.981 km, entre 28 de abril e 11 de maio de 1919. Apesar do calendário apertado, cento e trinta e oito pessoas se inscreveram para o Circuito dos Campos de Batalha, mas só oitenta e sete bravos apareceram para a largada. A prova seria realizada em estrada aberta, em trechos de terra batida alternados com uns poucos trechos de paralelepípedos, em bicicletas que pesavam quase 50 quilos e tinham apenas duas “marchas”. Nenhum suporte externo era permitido aos competidores, como de costume, o que levava a situações como a de Paul Duboc, no Tour de France de 1911, que consumiu uma bebida estragada e teve um desarranjo intenso – a corrida começou com ele ao lado da estrada, cuidando de seus afazeres sanitários, à vista da Comissão Organizadora que queria ter certeza de que ele não recebesse nenhum apoio externo. A premiação, contudo, era um bom incentivo: o vencedor geral poderia levar para casa o equivalente a quatro anos de salário de um trabalhador comum, e cada vencedor de etapa embolsaria 9 meses de trabalho regular.

 

O percurso

A prova se mostrou um desafio em todos os aspectos possíveis. Psicologicamente, simples entusiastas corriam contra profissionais acostumados com os desafios do Tour de France; jovens desafiantes estavam lado a lado com homens que perderam amigos e irmãos no front, passando por campos onde esses entes queridos pereceram. Vários competidores eram veteranos da guerra, passando por locais onde combateram, apenas meio ano depois do fim das hostilidades. Alguns precisaram de licença especial das forças armadas, pois ainda não tinham sido oficialmente desmobilizados. Em se tratando de clima, fortes ventos se alternavam com chuvas inclementes e uma nevasca impediu até os carros da equipe organizadora de seguirem em frente, mas a mesma equipe garantiu que os atletas poderiam atravessar a neve acumulada com suas bicicletas. As estradas eram um misto de trechos ruins e péssimos, com quilômetros de vias esburacadas por bombardeios e pelo trânsito intenso de veículos de suporte logístico das tropas no front. Alguns trechos de estradas, como certas vilas, tinham simplesmente desaparecido ou foram transformados em pilhas de escombros. O elemento mais complicado, contudo, era o entorno. Frequentemente os atletas estariam na Zone Rouge, ou Zona Vermelha.

 

Parte do campo de batalha de Verdun, na Zona Vermelha. Fotografia de 2005.

 

Após a guerra, o território de fronteiras foi dividido. Primeiro foram definidas as áreas relativamente boas, prontas para reconstrução e agricultura. Depois, as Zonas Amarelas, parcialmente destruídas pela guerra e que exigiam trabalhos de limpeza de material e reconstrução geral. Por fim, as Zonas Vermelhas eram as regiões consideradas totalmente destruídas, que tinham forte contaminação por agentes químicos, ou ainda uma quantidade tal de munição não detonada, armadilhas e restos da guerra (humanos, inclusive) que não era possível limpar em curto prazo. Durante a retirada alemã cada árvore frutífera tinha sido derrubada, cada prédio destruído, cada poço foi contaminado, rios desviados e represados para causar alagamentos, animais mortos e armadilhados, estradas minadas, ou seja, o governo francês considerou que essas áreas não estariam mais aptas para habitação ou cultivo. Boa parte das etapas do Circuit des Champs de Bataille aconteceram dentro das Zonas Vermelhas. Desde então, parte dessas Zonas Vermelhas foi reabilitada, mas ainda há setores nos quais a entrada é proibida, mais de 100 anos depois da guerra. Para termos uma noção do estrago, a reconstrução só no ano de 1919 incluiu o preenchimento de 333 milhões de metros cúbicos de trincheiras, 375 milhões de metros quadrados de cercas de arame farpado retirados, 442.000 edifícios reconstruídos, 21 milhões de toneladas de munição precisaram de destino, entre outras medidas. Só em 1919. O Guia Michelin de turismo de 1919 passou por algumas áreas assim, apontando que munição e armamento ainda podiam ser vistos nos campos, bem como cadáveres insepultos – e o guia ainda incluiu uma fotografia.

Ao final da corrida, somente 21 competidores concluíram o percurso. Charles Deruyter foi o vencedor, com uma vantagem de mais de 70 horas sobre Louis Ellner, o último colocado, que competia com sua bicicleta de passeio – completamente inapropriada para o evento. O Circuito dos Campos de Batalha foi tão extremo, tão brutal, tão desumano, que nunca mais foi repetido e passou a ser pouco citado, quase ignorado, desde então.

Charles Deruyter – vencedor da competição

 

Riding in the Zone Rouge: The Tour of the Battlefields 1919 – Cycling’s Toughest-Ever Stage Race é uma obra de Tom Isitt. Com mais de 30 anos de experiência em fotografia e jornalismo escrito, Tom é fotojornalista especializado em ciclismo, esportes de aventura e viagens. Sua escrita é leve, fluida, e nos dá a sensação de conversar com um amigo de longa data. Neste livro, o autor discorre sobre a criação dessa corrida, a trajetória dos participantes etapa a etapa, seus dramas e suas dificuldades, além de trazer a sua experiência. Os relatos da corrida são intercalados com a viagem que ele fez, de bicicleta, seguindo o percurso da corrida de 1919 o melhor que conseguiu, dadas as mudanças e as condições do terreno. Em diversos momentos é possível se deliciar com relatos de um cicloturista que consegue se expressar muito mal em francês, em situações engraçadas, atravessando as dificuldades de qualquer pessoa que se dispõe a viajar sobre duas rodas e um selim. Passando por locais ainda desolados, Tom nos descreve trincheiras, fortificações, vilas e percursos, estradas e caminhos que testemunharam a violenta construção do mundo como o conhecemos hoje. Conforme as páginas passam nós somos apresentados ao horror da guerra, ao sofrimento dos competidores, e a um vislumbre da escala de destruição gerada pela Primeira Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, rimos com as situações de viagem e apreciamos a descrição das paisagens, além dos locais de interesse histórico, um século depois da guerra que deveria acabar com todas as guerras.

Livro excelente, uma pena ainda não estar disponível em português.


Riding in the Zone Rouge: The Tour of the Battlefields 1919 – Cycling’s Toughest-Ever Stage Race

Autor: Tom Isitt

Editora: George Weidenfeld & Nicholson

Ano: 2020

320 páginas


EbookCapa comumAudiolivro (Audible)


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